Share, , Google Plus, Pinterest,

Print

Posted in:

Aparição

de Fernando Vendrell

muito bom

Adaptação cinematográfica do romance homónimo de Vergílio Ferreira, “Aparição” transporta-nos para o interior de Évora no final dos anos 50, nomeadamente, a partir do momento em que Alberto Soares chega a esta cidade para dar aulas no liceu. Este jovem professor e escritor é interpretado por Jaime Freitas, um actor que imprime um tom aparentemente calmo e cordial ao protagonista, um existencialista que se preocupa com questões relacionadas com o Homem, a vida e a morte, a palavra e a existência. No liceu, expõe algumas das suas ideias e uma porção dos seus escritos, tenta estimular os seus alunos a pensar e a reflectir, algo que contraria o conservadorismo do reitor (João Lagarto) deste espaço e contrasta com os valores bolorentos do Estado Novo. Note-se quando o reitor utiliza um tom entre a sugestão e a ordem para pedir que o protagonista altere os temas das redacções dos alunos, um acto que sublinha a procura do primeiro em não romper com a ordem estabelecida.

Essa obsessão pela manutenção do status quo e a aversão à confusão é paradigmaticamente plasmada na figura de Machado (João Vaz), o proprietário da pensão onde Alberto fica inicialmente instalado. Machado aparece como uma forma leve e bem humorada do realizador Fernando Vendrell abordar o conservadorismo da época e o carácter fechado deste espaço citadino, com João Vaz a imprimir um estilo deveras peculiar a este individuo que parece fazer de tudo para que Basil Fawlty pareça um homem sensato em comparação com a sua pessoa. Diga-se que a cidade de Évora surge representada como um espaço labiríntico, onde todos se conhecem e ninguém sabe realmente uns sobre os outros, com as suas muralhas a estarem longe de sossegarem a alma do protagonista. Na cidade, este é bem recebido pelo Dr. Moura (Rui Morisson), um médico amigo do seu falecido pai, que logo o convida para jantar com a esposa (Teresa Madruga) e as três filhas.

A filha mais velha do casal é Ana (Rita Martins), uma mulher que apresenta uma atitude ambígua para com Alberto, sendo bem mais clara a exprimir que nem sempre se sente à vontade com os comportamentos desadequados de Alfredo (Dinis Gomes), o seu esposo. A mais nova é Cristina (Inês Trindade), uma rapariga algo tímida, enquanto que a filha do meio é Sofia (Victória Guerra), aquela que mexe com o protagonista e o enredo. Victória Guerra insere um estilo vivaz, provocador e sedutor à sua personagem, uma mulher algo rebelde que pretende tirar o curso de direito. Esta tem dificuldades notórias no que diz respeito ao latim, algo que a conduz a começar a receber explicações do protagonista. A língua que reúne estes personagens pode estar morta, mas os sentimentos que os unem estão bem vivos, com a ligação entre ambos a ser marcada pelo forte efeito que provocam um no outro e pelos momentos em que colocam os seus ideais e ideias em diálogo.

A tonalidade vermelha sobressai em Sofia, seja no batom, no verniz das unhas, ou num lenço, algo que permite realçar a faceta sensual desta personagem, bem como a sua personalidade desafiadora e os perigos que envolvem a sua pessoa a partir do momento em que se envolve com Carolino (João Cachola), um dos alunos de Alberto. João Cachola é um dos destaques do elenco, com o actor a conseguir transmitir a faceta perturbada do seu personagem, um jovem emocionalmente fragilizado e perigoso, que se encontra obcecado com a morte ao ponto de compará-la a um acto criador. Num determinado momento do filme, encontramos Alberto e Carolino a trocarem palavras em pleno Cromeleque dos Almendres, um cenário que coloca em diálogo o passado e o presente, a vida e a morte, bem como uma série de dúvidas de outrora que provavelmente continuam a tocar os dias de hoje. O nevoeiro contamina o cenário e contribui para adensar a confusão que percorre a mente do jovem, enquanto o professor tenta contrariá-lo, com ambos a procurarem encontrar-se a si próprios e a permitirem que os seus intérpretes sobressaiam.

A nível exterior, Alberto aparenta ser uma figura calma, que praticamente não levanta a voz, com as suas vestimentas, pontuadas por tonalidades neutras e discretas, a exacerbarem a sua faceta comedida. No entanto, é notório que a nível interior conta com alguma inquietação e uma série de dúvidas, algo que se torna particularmente latente com o avançar do enredo. A presença de “La condition humaine” entre as suas posses não parece surgir ao acaso, ou não estivéssemos perante um livro que é descrito como um “documento incontornável de reflexão sobre o indivíduo, sobre o confronto entre ética pessoal e convicção ideológica, sobre traição e morte, sobre amor e liberdade“. As ideias e ideais de Alberto por vezes são encarados com algum desdém, embora isso não reduza a sua sede de se conhecer, tendo nesta cidade um espaço onde se depara com uma miríade de sentimentos e sensações.

Jaime Freitas tem um trabalho competente a compor este personagem que salta da literatura para o cinema, com o actor a sobressair quer quando Alberto está sozinho, que nos trechos em que se encontra acompanhado por elementos como Sofia ou Carolino. Diga-se que o cinema e a literatura dialogam ao longo do filme, seja nas falas marcadas por ingredientes literários, ou através da presença de um personagem que surge na fase final da fita. Também o protagonista gosta de dialogar, seja com os personagens mencionados, ou com figuras como Chico (Ricardo Aibéo), o tio de Carolino, um indivíduo algo conservador que vê quase todas as suas iniciativas culturais serem travadas à nascença. O período em que se desenrola o enredo é pouco propício a grandes aventuras, tal como meio onde estes personagens habitam, com os seus comportamentos a remeterem em parte para a atmosfera da época. Diga-se que o trabalho a nível de decoração dos cenários e do guarda-roupa não compromete no que diz respeito à transmissão do período em que se desenrola a narrativa, para além de sublinhar elementos sobre as figuras que povoam o enredo.

Embora tenha o final dos anos 50 como pano de fundo, também não deixa de ser notório que, em certa medida, “Aparição” dialoga com o presente. Note-se como a interpretação errada de uma ideologia ou uma linha de pensamento pode provocar efeitos nefastos, algo que pode remeter para os fundamentalismos contemporâneos. Temos ainda a tentativa de Alberto estimular o pensamento e o debate numa sociedade que nem sempre o percebe, uma situação que nos transporta praticamente para o nosso quotidiano onde tudo é consumido de forma cada vez mais rápida e menos pensada, ponderada e debatida. Na sua entrevista ao site da sua produtora, Fernando Vendrell comentou que “Estamos no século XXI e tenho notado que há uma espécie de tentativa de esquecimento de alguns escritores muito importantes como Vergílio Ferreira“, algo que demonstra o seu apreço pela obra literária e pelo autor, um sentimento que transparece ao longo do filme, com o cineasta a trazer-nos uma fita dotada de interesse e conteúdo.

É certo que nem tudo funciona. Note-se o momento em que Sofia salienta um “etc, etc e tal e esses clichés todos”, algo que contribui mais para quebrar com o ambiente “de época” e a coerência dos diálogos do que para demonstrar a mordacidade da personagem, ou a falta de desenvolvimento do drama de Bailote (Figueira Cid). O caso de Bailote é paradigmático da faceta algo abrupta com que alguns episódios são inseridos e concluídos em alguns momentos de “Aparição”. A certa altura encontramos o personagem a queixar-se da incapacidade de movimentar a mão direita. Cerca de dois minutos depois já recebemos a notícia do seu suicídio. Esta elipse não funciona no contexto do filme e retira a capacidade de conseguirmos partilhar os sentimentos provocados pela morte do camponês. O mesmo se aplica a um episódio decisivo do último terço, algo que lhe retira um certo impacto e alguma intensidade. São pequenos tropeços que estão longe de tirar o prazer de visionar esta obra cinematográfica que sobressai não só pelos méritos mencionados, tais como as dinâmicas entre os personagens, as suas temáticas, as interpretações marcadas por composições cuidadas, um trabalho eficiente a nível da decoração dos cenários e caracterização, mas também pela sua capacidade de prender a atenção, gerar reflexão e sair valorizada após uma segunda visualização.

Observação: Filme visionado no âmbito da cobertura da nona edição do FESTin.

Review overview

Summary

Ratings in depth

  • Argumento
  • Interpretação
  • Produção
  • Realização
3.55 10 muito bom

Comentários