Entre confissões e danças nocturnas, amores que se esfumam e outros que se reencontram, corridas madrugadoras ritmadas ao som da música “Ces Bottes Sont Faites Pour Marcher” e da libertação da alegria de viver, “Amor Amor” aborda com profunda sensibilidade a complexidade e a emotividade que permeiam o amor e os sentimentos inerentes ao mesmo. É filme profundamente romântico, que se envolve por uma teia de relações e pelas diferentes formas de lidar com o amor, as desilusões amorosas e os desejos incontroláveis, que o digam os seus personagens principais, um grupo de amigos que vive um corrupio de emoções no período compreendido entre a madrugada de dia trinta e um de Dezembro e a de um de Janeiro.
“Amor Amor” deixa-nos inicialmente diante de três grupos de personagens que se encontram em três espaços distintos. É um recurso bastante prático para o realizador Jorge Cramez apresentar com clareza alguns dos personagens principais do filme e os traços primordiais das suas personalidades. O primeiro agrupamento é formado por Marta (Ana Moreira) e Lígia (Margarida Vila-Nova), que encontramos a dialogar tendo a noite como confidente e a cidade de Lisboa como companhia. A primeira demonstra a sua vontade de casar e ter filhos com Jorge (Jaime Freitas), o seu namorado, com quem mantém uma relação há sete anos. A segunda manifesta algum desprezo para com Jorge, exibe uma postura mais cínica e pragmática do que a amiga no que diz respeito aos homens e expõe o desejo de ver Marta ao lado de Bruno (Guilherme Moura), o seu irmão. O segundo grupo é constituído por Bruno e os seus amigos. Quando os conhecemos estão a beber cerveja e a finalizar um jogo de matraquilhos, pelo menos até o irmão de Lígia demonstrar a sua falta de vontade para permanecer no local e exibir as dores inerentes a um amor aparentemente não correspondido.
Por sua vez, o terceiro grupo encontra-se no interior de uma discoteca. É neste espaço que encontramos Jorge, enquanto este demonstra junto de Carlota (Maya Booth), uma das suas amigas, a sua insatisfação no que diz respeito à faceta controladora da namorada. Diga-se que Marta nem se encontra presente nesse preciso momento, algo que refuta o comentário de Jorge e sublinha a fase delicada da relação. A noite termina, mas o bando da discoteca não parece disposto a dar tréguas à diversão, algo notório quando os seus integrantes combinam uma ida ao Meco. Na praia, o grupo ganha a companhia de Carlos (Nuno Casanovas), o namorado de Lígia, um indivíduo que escolhe este cenário para revelar a Jorge que está apaixonado por Marta. São estas figuras e a sua teia de relações que acompanhamos ao longo de “Amor Amor”, com o argumento de Jorge Cramez, Edmundo Cordeiro e Tiago do Carmo Vaz, inspirado livremente em “A Praça Real ou o Amoroso Extravagante” (de Pierre Corneille), a conseguir expressar e desenvolver a complexidade e a multitude de emoções que rodeiam o sentimento do título e as dinâmicas entre estes personagens.
Nesta fase do texto já podem ter reparado que o elenco de “Amor Amor” é de grandíssimo nível. É de um nível tão alto que Jorge Cramez se dá ao luxo de colocar Joana de Verona e Maya Booth a interpretarem personagens extremamente secundárias, com a dupla a dar apenas um leve ar da sua graça. Não se pense com este comentário que o realizador não extrai o que de melhor o seu elenco principal tem para dar. “Amor Amor” é filme de interpretações dotadas de vida, alma e coração, que sabe colocar o destaque nos seus actores e actrizes e deixá-los encarnar personagens dotados de dimensão. Note-se os momentos em que a câmara se fecha nos rostos dos intérpretes e ficamos diante destes a dialogarem e a explanarem os seus sentimentos, quase como se estivessem a dirigir-se à nossa pessoa. Veja-se o momento em que encontramos Jorge e Marta à mesa, numa ocasião em que as falas desta contam com uma mistura de cansaço e desilusão e o primeiro apresenta um falso tom conciliador, com Ana Moreira e Jaime Freitas a protagonizarem um episódio emocionalmente intenso.
Os silêncios também contam com imenso relevo ao longo do filme. Note-se quando encontramos a câmara de filmar a concentrar individualmente as suas atenções nos rostos de Marta, Jorge, Carlos e Lígia, pronta a realçar algum mistério em volta dos seus pensamentos, ou o episódio em que o segundo deixa a imaginação tomar conta da sua mente e das obras de arte que observa. Temos ainda o trecho em que Marta lê um mail do namorado, com o rosto de Ana Moreira a perpassar a desilusão que envolve a mente e a alma da sua personagem devido ao conteúdo da mensagem. Com um olhar capaz de expressar uma imensidão de sentimentos, Ana Moreira consegue transmitir a vulnerabilidade e a melancolia de Marta, uma mulher que ama o namorado, embora aos poucos comece a perceber que a relação entrou num caminho sem retorno no qual a separação é inevitável. As suas roupas são discretas, sendo muitas das vezes marcadas por um tom azul que realça a sobriedade da sua personalidade, com o guarda-roupa a ser essencial para reforçar alguns traços ou mudanças destes personagens. Marta é uma personagem profundamente humana, que ama, sente dor e por vezes parece solitária, mesmo quando está acompanhada, tendo em Lígia uma das suas melhores amigas.
Margarida Vila-Nova explana com acerto a personalidade aparentemente mais pragmática e segura da sua personagem, uma mulher que procura lidar com o amor e as relações amorosas de uma forma mais distante e ligeira do que Marta. Ana Moreira e Margarida Vila-Nova deixam desde logo bem claro as personalidades aparentemente distintas das personagens que interpretam e a enorme cumplicidade que existe entre ambas, com a dupla a criar uma dinâmica extremamente convincente. Esta capacidade para esmiuçar as relações destes personagens é um dos grandes trunfos e méritos de “Amor Amor”. Observe-se a cumplicidade que existe entre Bruno e a irmã, ou entre este e os amigos, em particular, Júlio (Eduardo Frazão), com quem parece ter uma história que vai para além da amizade. De cabelo comprido e encaracolado, um estilo simples e informal de agir e vestir, Guilherme Moura convence-nos que o seu Bruno carrega na alma o peso da incerteza em relação a uma paixão que tem tudo para desembocar numa desgosto. Se Bruno carrega na sua mente o fogo de um amor incerto, já Jorge exibe um desencanto que remete para o desgaste da sua relação com Marta.
Jorge é um artista que tem na fotografia e na pintura as suas artes, que se encontra a preparar uma exposição e a lidar com a amarga sensação de que tudo o que outrora amava em Marta deixou de ter o mesmo efeito no presente. Jaime Freitas é bastante preciso a expressar as emoções do seu personagem, sejam aquelas que este explana de forma clara ou as que ficam presas no âmago do seu ser. A dinâmica do actor com Ana Moreira é marcada pela desilusão que dinamita o relacionamento do casal, com ambos a protagonizarem uma série de momentos nos quais demonstram os objectivos distintos que têm para a relação. Um desses episódios marcantes decorre numa discoteca, com as luzes fortes a serem sentidas, bem como o olhar atento de Marilyn Monroe. A loira explosiva aparece num quadro, imóvel e atenta, enquanto o casal troca um diálogo acalorado que é observado de perto pela primeira e intensificado pelas luzes que pontuam o cenário. Por sua vez, Lígia e Carlos contam com uma relação mais desprendida, embora preparem-se para conhecer algumas surpresas, sobretudo no que diz respeito ao amor.
Quase todos estes personagens contam com uma vida relativamente desafogada, amam, divertem-se, consomem drogas, desiludem-se, jogam com o destino e são joguetes do mesmo, enquanto protagonizam um final de ano marcante. Os prazeres que desfrutam são muitas das vezes efémeros, sobretudo quando estão ligados ao consumo de álcool, tabaco ou drogas, embora as marcas deixadas pelo amor prometam ser permanentes. A cidade de Lisboa é o palco de boa parte destes episódios, com a capital a ser exposta com um tom romântico muito particular. Esse tom é reforçado não só pela fotografia de João Ribeiro e pela banda sonora, composta por temas que variam entre o já mencionado “Ces Bottes Sont Faites Pour Marcher” (Eileen) ou “La valse à mille temps” (Jacques Brell), mas também pelos dilemas dos diversos personagens. O amor é o elemento transversal a estes dilemas, seja aquele que floresce ou o que desvanece, com Jorge Cramez a realizar um romance dotado de charme e elegância, que conta com personagens que despertam facilmente a nossa curiosidade e um elenco de altíssimo nível.
Review overview
Summary
Jorge Cramez realiza um romance dotado de charme e elegância, que conta com personagens que despertam facilmente a nossa curiosidade e um elenco de altíssimo nível.
Ratings in depth
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização