Podemos inferir algo sobre um realizador a partir dos seus filmes? Se a resposta for sim, então o mais provável é que Justin Amorim tenha uma predilecção pela utilização da câmara lenta e por pontuar uma miríade de momentos do enredo com música, imenso estilo e ritmo. Estilo é algo que não falta a “Leviano”, a primeira longa-metragem do cineasta. A substância está em falta, é certo. Os personagens contam quase todos com a densidade de um guardanapo de folha fina, o enredo está longe de ser tão intrincado e irreverente como inicialmente deixa transparecer, as temáticas pouco são desenvolvidas e a espaços tudo parece demasiado inconsequente (com excepção do seu desfecho, deliciosamente negro e delirante, ou de uma caminhada acelerada em direcção a uma casa de banho, filmada com enorme brilhantismo). No entanto, a sua atmosfera é estranhamente envolvente e inebriante ao ponto de não conseguirmos descartar “Leviano”, mesmo quando pouco parece fazer sentido. Ou seja, aquilo que também podemos inferir sobre Justin Amorim é que conta com uma certa capacidade para criar um ambiente que nos predispõe a seguir os acontecimentos da fita, tendo como aliados a errática banda sonora, a fotografia e alguns elementos do elenco.
O trabalho de Edward Herrera na cinematografia exacerba as características solarengas do território algarvio onde decorre o enredo, com a luminosidade bem viva e os tons quentes a estarem muito presentes durante uma fase considerável da narrativa e a banharem os corpos e os cenários. Diga-se que o guarda-roupa, muito marcado por vestimentas leves, é outro dos componentes que contribuem para sublinhar as altas temperaturas que percorrem os espaços e os corpos, ou não estivéssemos perante uma obra que gosta de realçar a fisionomia dos seus intérpretes. “Leviano” começa in media res, nomeadamente, quando Anita Paixão (Anabela Teixeira) e as suas filhas, Adelaide (Diana Marquês Guerra), Júlia (Mikaela Lupu) e Carolina (Alba Baptista), preparam-se para conceder uma entrevista a uma jornalista sobre um crime controverso que envolveu este núcleo familiar. A primeira procura transmitir a ideia de que mantém uma relação de proximidade com as jovens, algo que contrasta com os rostos e os gestos amorfos deste trio. Percebemos que qualquer coisa não bate certo, ao mesmo tempo em que ficamos diante de um trecho que demonstra a eficiência das suas intérpretes. Logo recuamos um ano, com o enredo a ziguezaguear entre o passado e o presente, enquanto ficamos a conhecer aos poucos aquilo que as levou a estarem diante da repórter e alguns traços das mesmas.
Uma parte considerável destas figuras pauta-se pelos comportamentos fúteis ou por raramente fugir de um arquétipo ou da descrição inicial. Anita apresenta algum cuidado com as filhas, tem um caso com Gonçalo (Ruben Rua), conta com uma personalidade relativamente estouvada e aparentemente não precisa de trabalhar para pagar as contas. Adelaide é a irmã mais velha, sendo aquela que é mais dada a desafiar a progenitora e a envolver-se em situações problemáticas. Júlia aparenta ser a mais ponderada e tímida. Carolina quer ser modelo, é religiosa e está a lidar com o efervescer da sua sexualidade. Estes traços das personagens são expostos com alguma competência pelas suas intérpretes, com o quarteto a não comprometer. Uma festa na casa desta família é palco de alguns episódios que marcam “Leviano”. Temos o grande momento musical do filme, em particular, quando as irmãs dançam ao som de “Amanhã de Manhã” das Doce, com o ritmo da música a contagiar o evento, um pouco à imagem da canção “Amor” dos Heróis do Mar, dois temas que se adequam que nem uma luva ao clima dos trechos onde estão inseridos. É nas imediações (espaciais e temporais) desta festa que decorrem dois episódios importantes: Anita decide fugir de casa com o namorado; Adelaide é abusada sexualmente por Filipe (José Fidalgo), o seu professor de ténis, algo que deixa marcas na jovem.
A fuga da personagem interpretada por uma sempre competente Anabela Teixeira conduz as três irmãs a saírem temporariamente de casa, tendo em vista a encontrarem a progenitora. Não sentimos qualquer sentido de urgência em relação a esta busca, tal como raramente somos estimulados a querer descobrir o crime macabro que envolve estas figuras. Tudo é desenvolvido com demasiada superficialidade. As irmãs vão à praia, frequentam festas, vão a um concurso, aproximam-se, aborrecem-se, embora raramente as vejamos verdadeiramente preocupadas com a progenitora. Pelo caminho contactam com Eduardo (João Mota) e Lucas (Leonardo Martins), os irmãos mais novos de Gonçalo, com o primeiro a despertar o interesse de Júlia e a cobiça de Adelaide. Outro dos elementos com quem estas contactam é Xico (João Pedro Correia), o tio destas, um dos vários personagens que raramente são desenvolvidos, um pouco à imagem de Soraia (Gabriella Brooks) e Fábio (Pedro Barroso). Se o desenvolvimento dos personagens e os diálogos aprumados estão longe de fazerem parte dos pontos forte da película, já a banda sonora expressa de forma paradigmática o quão errática é esta longa-metragem. Por vezes funciona, tal como na festa. Em outras apenas parece estar ali para sobrepor-se ao enredo ou para dar a ideia de que estamos diante de um videoclipe ou de um anúncio que visa promover os envolvidos.
Vale a pena realçar que “Leviano” assume a espaços uma faceta de musical, seja quando a música e a dança encontram-se bastante presentes ou nas ocasiões em que encontramos os personagens a seguirem praticamente os ritmos da banda sonora. Por sua vez o trabalho a nível da decoração dos cenários é relativamente competente, sobretudo no que diz respeito à habitação da família Paixão, um espaço de largas dimensões e um conjunto de elementos decorativos que realçam o facto de estarmos perante um núcleo familiar com alguma disponibilidade financeira. Também conta com alguma disponibilidade para se entregar aos prazeres efémeros, algo realçado pelo cartaz da película. O poster de “Leviano” destaca uma parte dos corpos e os semblantes de diversos elementos do elenco, uma medida que procura reforçar a ideia de que estamos perante um filme irreverente, pronto a abordar a sexualidade e os desejos dos personagens sem grandes tabus. Nem sempre é assim tão arrojado, nem parte a loiça toda como ameaça em alguns trechos. Em algumas situações até tem um conjunto de tropeções comprometedores. Mas, no final, é praticamente impossível afirmar que estamos perante uma fita totalmente irrelevante.
Review overview
Summary
Nem sempre é tão arrojado, nem parte a loiça toda como ameaça em alguns trechos. Em algumas situações até tem um conjunto de tropeções comprometedores. Mas, no final, é praticamente impossível afirmar que estamos perante uma fita totalmente irrelevante.
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização