Uma das obras mais imaginativas, delirantes e marcantes da 24ª edição do festival Caminhos do Cinema Português, “Entre Sombras” aparece como uma daquelas agradáveis surpresas que qualquer cinéfilo gosta de ter. Por vezes parece saída dos filmes noir (o forte contraste entre luz e sombras, os personagens de carácter dúbio, as figuras fumadoras, o clube nocturno), ainda que esteja disposta a desconstruir algumas das suas convenções (o facto da narradora ser mulher não é obra do acaso). A certa altura indica ter ido buscar uma certa criatividade, peculiaridade e saudável loucura a alguns dos trabalhos de Jean-Pierre Jeunet. Em outros momentos aparenta ter bebericado em fontes de inspiração como os filmes de assalto ou as inventivas obras de Georges Méliès. No final é algo com vida própria, que sobrevive às comparações e às possíveis referências, enquanto aproveita técnicas de animação como stop-motion e pixilation para apresentar-nos a um universo narrativo onde os corações podem ser guardados num banco, o irreal convive com o real e a criatividade não parece ter limites.
Brilhantemente realizada por Mónica Santos e Alice Guimarães, a curta coloca-nos diante de Natália (Sara Costa), uma empregada de um banco. Esta conta com rotinas laborais monótonas e enfadonhas, muito marcadas pela repetição diária das funções e uma relação nem sempre pacífica com a passagem do tempo. Para aumentar a produtividade, utiliza dois braços postiços, uma invenção que certamente agradaria a boa parte das empresas ansiosas por rentabilizarem ao máximo os seus funcionários, com “Entre Sombras” a efectuar um breve comentário sobre o mundo laboral, até rapidamente partir para outra. É filme sem tempo a perder, que sabe que conta com uma curta duração e precisa de expor tudo de modo preciso e conciso. Note-se a forma célere como Natália recebe um bilhete, entra no clube nocturno Private Eye e toma contacto com o indivíduo misterioso (Gilberto Oliveira) que enviou a missiva. O coração deste foi supostamente roubado e depositado no banco, algo que o conduz a procurar o auxílio da protagonista, um pedido que esta encara como um desafio às suas rotinas.
A partir do momento em que a dupla sai do bar, “Entre Sombras” deixa-nos diante de um assalto, sombras perseguidoras, reviravoltas, jogos de sedução, traições, ou seja, de uma cacofonia de situações que dinamizam o enredo e expõem as verdadeiras intenções de diversos personagens. Não podemos revelar mais a não ser a nossa surpresa em relação à perícia com que Mónica Santos e Alice Guimarães envolvem o espectador para o interior deste universo narrativo onde tudo parece ser possível e muito parece ter sido pensado ao pormenor. Observe-se o clube nocturno, um espaço onde a influência dos noir e de Méliès se parece fazer sentir, ou a sedutora banda sonora, ou uma cena de sexo pontuada por uma mescla de sensualidade e delírio, ou as especificidades do banco onde são guardados os corações. Temos ainda o guarda-roupa, que tanto remete para os anos 40 ou 50 ou para um ideal que temos desses tempos como para as características quase surrealistas da fita, com a dupla de realizadoras e a sua equipa a utilizarem os recursos que têm à sua disposição para incutirem um ambiente muito próprio a “Entre Sombras”.
Como já foi mencionado, essa singularidade encontra eco em outros períodos e em outros filmes. Note-se o caso da maneira como é utilizada a narração em off, muito ao jeito dos noir, com Margarida Vila-Nova a surgir como narradora de serviço e a dar voz aos pensamentos de Natália e ao modo muito próprio como esta descreve os acontecimentos. Vila-Nova é essencial para que a protagonista se torne praticamente numa cúmplice do espectador, enquanto Sara Costa concede-lhe alma e credibilidade. No filme, o coração pode ser retirado do corpo humano com recurso a uma chave e guardado num banco. O que não deixa de ser curioso, já que “Entre Sombras” segue precisamente o rumo inverso, com Alice Guimarães e Mónica Santos a realizarem uma película que nunca perde, nem tira o coração do lugar. Não sabemos o que as realizadoras vão fazer daqui para a frente. O que sabemos é que o cinema português só sai a ganhar com filmes como este.
Review overview
Summary
Uma das obras mais imaginativas, delirantes e marcantes da 24ª edição do Caminhos do Cinema Português.
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Argumento
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Interpretação
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Produção
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Realização